terça-feira, 5 de maio de 2020

Conflitos entre gênero e raça? A participação de Thelma e Babu no BBB 2020

O Blog recebe com muita felicidade, este artigo de opinião da minha amiga querida Indiara Souza (abraçooooo), que compartilhou conosco reflexões importantes envolvendo a falsa disputa entre gênero e raça no BBB 20. Leiam e deixem comentários, porque ela está estreando! E que texto, minha gente!


                                                                                                                  Por Indiara Souza*

Famosos e anônimos apontam atitudes racistas de brothers com Babu ...O reality show Big Brother Brasil apresentou, nesse ano de 2020, uma edição que, para muitos espectadores, foi considerada histórica. Em sua vigésima exibição, o reality teve em seu elenco duas pessoas negras: Babu Santana, ator convidado, e Thelma Assis, médica, inscrita selecionada.
Desde o primeiro contato na casa, Thelma e Babu comentaram sobre a importância de ambos naquele espaço, para compartilhar experiências semelhantes, no que diz respeito ao debate racial. A partir disso, surgiu nas redes sociais uma euforia, principalmente por parte das pessoas negras, que enxergaram em Babu e Thelma representação tão potente.
O BBB 20 obteve destaque também por ter sido composto por alguns homens de caráter duvidoso e questionável. Logo nas primeiras semanas do programa houve uma repulsa por parte do público direcionada a esses participantes. Assim, ocorreram as eliminações do jogo e, consequentemente, os homens começaram a sair e as aproximações por afinidade começaram.
Babu teve facilidade em dialogar com os homens mais criticados da edição e Thelma com uma colega de profissão que, no momento, era bem avaliada pelos espectadores. É nesse contexto de escolhas ou afinidades distintas que destaco algumas percepções sobre o debate nas redes sociais.
Desde o primeiro paredão que Babu enfrentou, ele optou por mencionar sua história e as dificuldades enfrentadas; Thelma escolheu se apresentar como um exemplo de superação, mulher negra que foi adotada na infância, de família pobre, teve que criar oportunidades para conseguir estudar. No seu canal no Youtube, ela conta a dificuldade que enfrentou até se tornar uma médica e os comportamentos racistas e sexistas que ainda sofre, atuando na área da saúde.
A diferença do discurso da Thelma e do Babu no programa foi: Babu mencionava as dificuldades financeiras que tinha deixado aqui fora e como era preterido por outros atores "padrão". Thelma exigia reconhecimento por sua personalidade e coerência. Destaco mais uma vez que minha intenção não é questionar a empatia do público por Babu, mas sim pontuar a maneira como a sociedade lida com uma mulher preta que “não deita para ninguém”, como diz o ditado popular.
Babu além de manter relação muito próxima de afeto com homens brancos extremamente machistas e homofóbicos, também sorriu das falas agressivas dos amigos e fez alguns comentários como: “se ela dança seduzindo assim ta pedindo, não adianta reclamar depois” e “aquele viadinho”, entre outros. Ele levantou discussões dentro da casa, que refletiram nas redes socias, uma delas foi como é negativo se referir a uma pessoa negra chamando a mesma de negra, afirmou que somente no Brasil isso é aceitável. Como estamos todxs passíveis a equívocos, alguns militantes o defenderam, com o argumento de que essa pode ser uma visão pessoal.
Alguns poucos posicionamentos contrários a essa afirmação me trouxe a memória um artigo com o tema “Quem tem medo da palavra negro”, escrito por Cuti e publicado na revista Matriz, em 2010. Cuti afirma que ao usarmos a palavra negrx, estamos impedindo que esqueçam toda carga semântica que ela carrega, a história não permite que nos esqueçamos de como a população negra foi duramente escravizada durante séculos, exatamente por serem NEGRXS. Assim, nos afirmar negras e negros também nos remete à dívida histórica, a resistência antirracista do nosso povo. A tentativa de excluir essa palavra do nosso vocabulário não é algo inocente, é mais uma atividade colonizadora com intuito de nos fazer ignorar tamanha crueldade.
Entre essas discordâncias, nas redes sociais, o que predominou foram diversas páginas e pessoas que se afirmam como militantes, apresentando Babu como um professor. Entendo essa afirmação um tanto prejudicial pois, deslegitima profissionais e pesquisadorxs que se dedicam em apresentar uma escrita negra coerente com dados comprovados. E por que essa reflexão? Porque essas mesmas pessoas defenderam Babu das suas falas machistas e homofóbicas com o seguinte comentário “é uma questão estrutural, Babu é um cara do povão”. Esse mesmo homem do povão também ganhou duas vezes o prêmio nacional de maior destaque “Grande Otelo” de melhor ator.
Essas premiações também fazem parte da carreira de um homem que fez mais de 40 trabalhos, incluindo novelas e participações no cinema, etc. Com isso, penso que diferente de muitas outras pessoas negras, Babu está em espaços que outros negros não têm acesso. Thelma precisou se inscrever para participar do BBB, Babu foi convidado. Estudar sobre aquilo que ele afirma defender não é algo difícil e distante da realidade dele, ignorar isso é um tanto irresponsável; quando exigem uma postura extremamente personalizada de uma mulher negra, que foi o caso da Thelma.
BBB20: Prior pede para Babu votar em Thelma, ator nega e irrita ...

Todas as vezes que iniciava o debate sobre questões raciais no reality, Thelma e Babu apresentavam suas vivências e considerações, mas somente Babu recebeu o maior destaque e apoio. Babu foi defendido quando apoiou seus amigos machistas e justificou que a postura dos mesmos era algo “comportamental”. Ele afirmava que não votaria em Thelma enquanto tivesse outras opções, desde que essa outra opção não fosse seu amigo Prior (acusado de estupro, após a saída do reality), agressivo com ações e palavras. Thelma também afirmou que não votaria em Babu tendo outras opções, opções essas que não fossem suas duas amigas. Thelma defendeu Babu quando insinuaram medo dele e partiu para o enfrentamento por não votar nele. Por isso, recebeu o castigo do monstro (uma espécie de "prenda", em consequência de uma prova, que premia o vencedor com um almoço e ainda garante o direito a levar dois participantes mais próximos) e o distanciamento de algumas pessoas que ela tinha muito carinho.
Em contrapartida, foi insultada por um amigo do Babu afirmando que não tinha o que discutir com Thelma, pois ele “tinha berço”. Essa discussão aconteceu literalmente na frente do Babu e ele não pronunciou uma única palavra para defender a mulher negra. Mas o mesmo Babu afirmou para um homem branco que Thelma havia escolhido a casa grande, apenas por ter aceitado o afeto de mulheres brancas. Em nenhum momento Babu foi julgado por isso, Thelma foi extremamente julgada quando optou por não votar em sua amiga sendo rotulada como “chaveirinho de mulher branca”, sua página foi duramente criticada, enquanto a página do Babu reproduziu o mesmo comportamento do Babu fora da casa chamando Thelma de mucama: termo usado no período escravocrata, referente à negra escrava que realizava as obrigações domésticas e também era ama de leite dos filhos dos senhores. Mais uma vez, a militância permaneceu em silêncio.
O argumento de que Thelma priorizou gênero ao invés de raça, como fez Babu, é inválido quando analisamos as defesas dele para seus amigos. Assim é nítida a solidão da mulher negra na sociedade, pois para muitas pessoas o correto seria Thelma abrir mão do afeto e lealdade oferecidos a ela, para defender um homem negro, que optou também por não a priorizar. Thelma foi criminalizada por usufruir de afeto. Esses acontecimentos me fazem concordar com a seguinte afirmação feita por minha amiga Beatriz Silveira: “existem privilégios dentro dos próprios movimentos, digo, no movimento negro nitidamente é o homem negro o privilegiado, no feminismo, a mulher branca”.
Nesse sentido, relembro a afirmação feita por Chimamanda Adichie, em Sejamos Todos Feministas (2016) “não é fácil conversar sobre a questão de gênero”, repensar nosso comportamento dentro dos próprios movimentos é necessário e diversas vezes não nos atentamos para isso. Entender que Thelma está em um lugar de privilégio em relação ao Babu é injusto, pois ambos frequentam espaços consequentes das escolhas profissionais. Thelma não deixa de sofrer racismo e misoginia por ser médica, a exemplo as injustas críticas direcionadas a ela no período do reality.
Thelma, até o último paredão, foi desacreditada ou tida como arrogante, apenas por não aceitar ser feita de boba ou diminuída. E me assusta a militância ignorar esses fatos, quando no próprio jogo ela sempre fazia provas com o Babu e ao perder uma dessas provas ele afirmou ter perdido porque “ela era lenta”, e quando a mesma venceu uma prova de resistência foi desmerecida dentro do próprio reality. Foi necessário brigar pelo reconhecimento, não houve comoção e sim termos como “ficou soberba, arrogante”. E quando o assunto era Babu, surgia textão nas redes sociais e muita emoção por ter um homem negro sendo injustiçado.
A minha reflexão não se baseia em ignorar a trajetória do Babu, mas sim de questionar como o homem, incluindo homens negros, mantém seus privilégios, sem que a sociedade faça uma reflexão. Antes mesmo de entrar no BBB Thelma expôs no seu canal sobre as diversas situações de racismo sofridas por ela, e em nenhum momento foi defendida como “dona e proprietária da palavra”, afinal, ela não agiu conforme o perfil de mulher negra que a “militância” impôs na internet. Para a mulher negra existe um perfil para que tenham empatia, para o homem, basta que ele apresente o mínimo discurso “bonitinho” para receber aplausos e honras.
Adichie (2019), em seu livro O perigo da história única, reflete acerca das relações de poder e como isso pode ser definitivo na história de um sujeito. Babu, sendo homem negro, obviamente está acima das mulheres negras na pirâmide social, seu discurso se estabelece e é defendido sem que haja resistência. Thelma, mulher negra que se encontra na base da pirâmide, precisa gritar para que seja notada, e talvez ouvida. Errar é inadmissível para uma mulher negra, para o homem negro há uma justificativa estrutural acerca do machismo e racismo, como se a mulher negra não fosse alvo de ambas crueldades.
A partir dessa insensibilidade direcionada à mulher negra, podemos relembrar a necessidade da visão interseccional teorizada por Kimberlé Crenshaw, que é fundamental no movimento feminista. Uma mulher negra não tem a vantagem de vivenciar apenas questões raciais, ela está em um lugar vulnerável, que tende a ser subalternizado, por experienciar gênero e raça, cruelmente, ao mesmo tempo. Ela não pode eleger uma opressão para lutar, precisa articular para se posicionar e resistir às diversas opressões. Assim, nota-se a importância de reconhecer o lugar social que os homens negros ocupam, para não perpetuar a invisibilidade na vida e luta das mulheres negras.
Durante os 98 dias do BBB tentaram criar uma história sobre a trajetória e escolhas da Thelma. Ao final, ela provou para todxs como a trajetória de uma mulher negra tende a ser solitária e difícil. Mas partir para o enfrentamento ainda é a melhor escolha quando concluímos um ciclo, entendendo que foi mérito único e exclusivo da nossa persistência e ousadia. 














* Indiara Souza, essa lindeza sabida, é graduanda do curso de Letras - Língua e Literaturas de Língua Portuguesa, na Universidade do Estado da Bahia, Campus IX.

6 comentários:

  1. Parabéns, que texto lindo e necessário !!

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  2. Ainda estamos longe de mudar essa realidade, mas saber que existem pessoas que lutam por causas tão importantes me conforta e me faz acreditar que podemos ter um mundo mais justo. Parabéns, Indi! Vc como sempre arrasando.

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  3. Uau! Excelentes reflexões. Parabéns a essa jovem escritora, que demonstra ter um olhar aguçado para questões que se apresentaram, muitas vezes, sutis, nos discursos expostos, bem como nos subentendido.

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  4. Indiara, gratidão pelo artigo!
    Você conseguiu explicitar bem, nossa posição de vulnerabilidade. Concordo plenamente que a única saída é se "articular para resistir às diversas opressões".

    Sigamos na luta compa!

    Amanda Silva

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  5. Parabéns pelo texto e pela reflexão. Muito boa.

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