domingo, 16 de fevereiro de 2014

O prefeito de Barreiras e a normalidade da violência: "eu tô acostumado com isso"

Por Paula Vielmo


Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é hábito
como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural
nada deve parecer impossível de mudar.
Bertolt Brecht



No dia 14 de fevereiro, um tema foi central nas rodas de conversas e redes sociais em Barreiras: a atitude do prefeito municipal de agredir manifestantes. O fato ganhou repercussão porque foi filmado e transmitido pela TV Oeste (local) e mais tarde pelo BA TV (estadual), com um forte comentário da apresentadora em Salvador. Em Barreiras não houve comentários da âncora.

Passei  o dia 14 trabalhando e somente no dia 15 pude me apropriar do fato, assistindo o vídeo do programa e procurando comentários e textos na imprensa local de Barreiras. Consegui achar o vídeo, mas apenas um texto local, superficial e sem identificação de autoria em um site de jornal. Os demais se limitaram a postar a gravação da reportagem da televisão. Além disso, achei na imprensa local uma ampla divulgação da rápida nota de esclarecimento que foi elaborado pela Assessoria da Prefeitura. Neste texto, procurarei de maneira sintética, abordar a reportagem, a nota de esclarecimento, a repercussão do fato e a normalidade da violência municipal, tudo misturado e desordenado.

A repressão aos movimentos sociais, populares e manifestos de rua são bem mais corriqueiros do que a televisão mostra. Essa prática, sobretudo por parte do Estado como poder, atua para manter a ordem, o que significa retirar do caminho as pessoas que representam algum obstáculo. A repressão coíbe muitas pessoas de se manifestarem, mesmo diante da conquista da liberdade de expressão, algo compreensível diante de uma nação que a pouco tempo viveu um período ditatorial. Em contrapartida, outras vão para o enfrentamento, como aconteceu com a população da comunidade do Conjunto Habitacional Arboreto I e II na manhã de 14 de fevereiro de 2014 em Barreiras, velho oeste da Bahia.

Em breves 1 minuto e 08 segundos desvelou para o estado baiano o que é o Prefeito, causando indignação generalizada, encarada por estas bandas em menor intensidade, verificada através da transformação do ocorrido em piada. Rapidamente, surgiram "memes" com fotos e frases. A situação passou de deprimente para engraçada, provocando uma perigosa manutenção da passividade hegemônica da população barreirense que, como muitas outras pessoas, olhou para os/as manifestantes como "baderneiros/as" e concordou que deveria mesmo "liberar" o acesso. Adotou-se uma perspectiva egoísta em relação ao que aquela comunidade está vivenciando em virtude da mudança do tráfego, demonstrando que grande parcela da população barreirense internalizou a violência, banalizando o desrespeito aos direitos humanos.

A reportagem na televisão, meio que transmite com grande alcance e repercussão, trouxe à tona através das imagens e da fala do prefeito o que vivenciamos em Barreiras e nesta administração, mas também no governo anterior, que enviava seus capangas para reprimir manifestantes (leia aqui, aqui e aqui). Todavia, me chamou a atenção, além de toda a violência, a fala dele "passa, passa por cima desses filhas da puta", que demonstra a capacidade realmente destrutiva do Prefeito, mas também uma violência de gênero, verificada mais ainda através da composição do manifesto: formado majoritariamente por mulheres e crianças. Sacou?

A atitude do prefeito foi anunciada em portais virtuais de grande acesso, como o G1, mas é, para mim, o reflexo direto da sua administração municipal e de todas as pessoas que o acompanham, seja através do voto, da defesa ou das alianças para garantir (re)eleição. A manutenção de um homem violento, desequilibrado em relação ao diálogo e habituado com a truculência, possuí cumplicidade e ampla rede para sustentar-se. 

Para nós, moradoras/es de Barreiras, a reação dele não é novidade. Todavia, não pode ocupar um lugar de "trivial" no cotidiano. A afirmação de que "eu tô acostumado com isso" desvela uma prática conhecida, mas abafada, sobretudo pelo medo. Não é "normal" e nem deve ser, agir com truculência em relação aos manifestos. Ele age assim porque possuí poder para isso, seja como prefeito, seja como homem rico e conhecedor da lentidão da justiça brasileira. Em todos os casos, ele possuí vantagem sistêmica sobre a população do Conjunto Habitacional Arboreto I e II e do presidente da Associação que foi agredido fisicamente.

Ao se manifestarem em relação a pouca segurança por causa do tráfego de veículos pesados nas proximidades do local em que residem, aquela população pobre, foi mais uma vez vítima, agora com relação à repressão física através do punho - literalmente - do prefeito municipal Antonio Henrique. As imagens filmadas daquele homem truculento mandando a máquina romper o bloqueio a todo custo de violência, desvelou uma prática conhecida da população em virtude do perfil e histórico do prefeito, o que provavelmente intimidou a imprensa local a falar sobre o assunto de maneira menos tímida.

Esta imprensa local, que apenas reproduziu em seus sites o vídeo, publicou rapidamente a "Nota de esclarecimento da Prefeitura sobre incidente envolvendo o Prefeito Antônio Henrique em manifestação em Barreiras", emitida pela ASECOM, dirigida pelo PT. Nesta nota, recheada de manipulações textuais para dar a impressão que foi um equívoco e que o prefeito apenas desejava garantir o trânsito, não substituí o poder e impacto das imagens, que comunicam uma outra mensagem.


Na nota, o objetivo é desqualificar a manifestação, acusando de não conseguirem negociar em virtude da "intencionalidade política das lideranças da manifestação". Ora, existe alguma manifestação humana que não seja política? O ser humano é essencialmente político e obviamente um manifesto que reivindica possui pauta política. Insinuar que um prefeito que não dialoga tentou o diálogo é tão calunioso quanto insinuar que havia manipulação do manifesto.

Dentre as inúmeras tentativas de defesa do prefeito, justificam que ele fora ofendido verbalmente. Ora, que prefeito sem controle emocional é esse? Violência tem justificativa? E por fim, um parágrafo de meras duas linhas e meia em que "O Governo Municipal lamenta a exploração política do episódio, uma vez que o Prefeito estava imbuído somente do propósito de desobstruir a via, para evitar maiores problemas", tentando, mais uma vez, deslocar o fato de termos um prefeito violento, levando para o campo da oposição.

Obviamente, a oposição vai explorar politicamente o caso, e isso deve ser realmente feito para jamais naturalizar este tipo de ação, pois se depender de certos Partidos aliados que cresceram à base de manifestação e agora se posicionam contra, cada dia mais os movimentos socais serão criminalizados. Porém, não basta distribuir imagens com frases engraçadas que logo cairão no esquecimento. É necessário analisar profundamente, bem mais do que consigo neste breve texto, as condições para essa situação e acima de tudo, não aceitar o que é hábito como natural e acreditar que podemos e devemos mudar as relações de poder em Barreiras, abandonando essa velha política, porque nada é impossível de mudar!

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Toda feminista é mal amada


Por Luíse Bello


(Inspirada pelo meu texto publicado  no incrível Think Olga, compartilho com vocês uma pequena introdução à minha faceta feminista. Enjoy!)

O título alarmante é pra chamar atenção mesmo e dizer que eu concordo com este que é o argumento mais batido daqueles que querem atacar o feminismo. É verdade. Toda feminista é mal amada. E ela só é mal amada porque é mulher. Sou uma delas e posso dizer que sou, sim, muito mal amada.
Sou mal amada desde criancinha quando me ensinaram que o meu mundo era um tanto quanto limitado. Na escolinha onde estudei até a quarta série (não sei o equivalente no mundo atual), o único brinquedo que havia no pátio era uma mesa de totó. Muito velha, muito capenga, mas era um sucesso – e exclusiva para os meninos. Eu já não gostava de futebol, mas tinha tanta vontade de brincar naquilo! E o fato de não poder me angustiava. Era a primeira de muitas experiências do tipo.
Conforme fui crescendo, descobri que a mídia também não me amava. Não fui amada por todas as novelas que retratavam somente mulheres que não se pareciam em nada comigo (ou com a maioria das mulheres que eu conheço); não fui amada pelos noticiários que tratam mulheres poderosas com desdém, focando por vezes em seus atributos físicos em detrimento de sua intelectualidade e conquistas alcançadas; não fui amada pelas revistas que me davam 101 conselhos para enlouquecer um homem e nenhum para me manter sã em meio a tanta pressão; não fui amada pelas receitas de emagrecimento que me adoeceram em busca de um ideal que só satisfaria aos outros; não fui amada pelas dicas de maquiagem que esconderiam as minhas imperfeições – e que me apontaram muito bem quais são elas.
Certamente não sou amada por uma sociedade que me condena se eu preservar a minha sexualidade (Puritana! Fresca! Cu doce! Sonsa!) e me condena se eu vivê-la livremente (Puta! Vagabunda! Piranha!); não sou amada por homens cada vez mais exigentes em aparência física e que dão notas de 0 a 10 para o meu corpo, analisando se sou digna ou não de sua afetividade; não sou amada pelas mulheres que, vítimas dessa realidade, me veem como ameaça, como inimiga, como alguém que está com inveja do que elas têm ou são ou, pior, como alguém que quer roubar o companheiro delas; não sou amada por uma conjuntura social em que as minhas roupas são vistas como determinantes da minha personalidade; não sou amada numa cidade sitiada por tarados, na qual devo evitar ruas, roupas e horários para não ser atacada; não sou amada por aqueles que culpam as mulheres em caso de assédio ou estupro contra elas.
Também não me ama o mercado de trabalho, que me oferece uma remuneração menor e, no fundo, torce o nariz para a minha maternidade; não sou amada pelas piadinhas sujas que ouço calada de meus superiores e colegas, por medo de perder o emprego em caso de denúncia; não sou amada ao ser chamada a atenção por excesso/falta de maquiagem; não sou amada por uma maioria masculina em cargos de chefia; não sou amada pela desconfiança de como consegui meu emprego ou uma promoção.
Sou mal amada porque, se eu não casar até uma certa idade, ninguém mais vai me querer! Nem se eu engordar, nem se eu emagrecer demais, nem se eu for muito poderosa (porque isso ~assusta~), nem se eu for muito submissa, nem se eu for muito inteligente, nem se eu for muito burra, nem se eu não me depilar, nem se eu falar palavrão, nem se eu gostar de sair à noite, nem se eu quiser compromisso sério, nem se eu não quiser compromisso sério. Não sou amada quando querem que eu, solteira, namore (só por namorar, só por ter alguém, só pra ter um homem que me ~assuma~); namorando, que eu case; casada, que tenha filho; com um filho, que tenha mais; com mais, que eu tome cuidado pra não embarangar e perder o marido. Não sou amada quando me dizem pra ter cuidado, hein, senão ele arranja outra!!!
A publicidade, então, me odeia! Afinal, não me vejo nos anúncios e sempre me pedem para mudar, seja meu cabelo, meu carro, minha cerveja, meu absorvente, minha barriga, meu molho de tomate, meus sapatos, meu hálito, meu refrigerante, meu provedor de internet, sempre me lembrando de que, assim, eu vou ficar mais gostosa, mais atraente, mais feliz, mais segura, mais tranquila -e menos eu. Porque, não adianta, eu nunca tô 100%. Eu nunca sou suficiente. Como, então, posso me sentir amada?
Se eu fosse amada (veja bem, não digo nem BEM amada, o que seria muito melhor. Só amor já ajudaria!), não reclamaria; não me sentiria feia, nem gorda, nem deslocada, nem magra, nem incapaz. Poderia circular livremente pelas ruas da minha cidade vestindo o que eu bem entendesse, sem que ninguém se sentisse no direito de opinar sobre o meu corpo ou me dissesse o que gostaria de fazer com ele. Ah, se eu fosse amada, seria valorizada em qualquer setor que eu desejasse trabalhar. E leria publicações femininas que falassem mais sobre mim, e menos sobre o que querem os homens. Se eu fosse amada, realmente, em todos os aspectos da minha vida, eu definitivamente não precisaria ser feminista, nem lutar por condições mínimas de liberdade para a mulher.
Não sendo o caso, sou mal amada e, sendo assim, só me resta ser feminista.
Postado originalmente em Cronicamente carioca