terça-feira, 26 de maio de 2020

129 anos de Barreiras: a espera de liberdade política plena

Por Paula Vielmo


No dia 26 de maio celebramos o aniversário de emancipação politica do município de Barreiras, ou seja, 129 anos atrás, nos tornamos independentes do território de Angical, sendo que já havíamos pertencido a Cotegipe e, antes, Pernambuco. Barreiras foi elevada a município, ocupando atualmente a posição central na região Oeste da Bahia.

Com cerca de 155 mil habitantes, é permeada por muitos rios, sendo rica em água, dos bens naturais mais preciosos. Todavia, as margens dos rios, privatizadas, dificultam o acesso ao que temos em abundância e está restrito à poucos que compraram seu pedaço de terra na beira do rio. Neste contexto hídrico, destaca-se o Rio Grande, principal afluente da margem esquerda do Velho Chico. Além disso, Barreiras é literalmente atravessada por três rodovias federais: BR 020, BR 135 e BR 242, sendo o principal entroncamento rodoviário da região.

A posição de entroncamento me leva ao fato de que, apesar de ser polo regional e ter grande população, Barreiras é conhecida por ser um lugar de passagem. Passagens que na maioria das vezes significam apenas benefício de quem utiliza do município e o vê como trampolim para atingir outros objetivos. Isto faz com que parcela significativa das pessoas não se envolva com as questões locais.

Este aniversário ocorre durante a pandemia do novo coronavírus e inúmeros casos da doença Covid-19 começam a aparecer no município. Casos que provavelmente poderiam ser evitados se o chefe do poder executivo tivesse adotado medidas que não estimulassem as pessoas à saírem de casa. O comércio foi reaberto a partir de 06 de abril  quando havia um caso confirmado e em 25/05 já são 37 casos confirmados. As ruas movimentadas também demonstram o baixo nível de consciência local.

É forte uma concepção desenvolvimentista permeando a construção local, seja pela imprensa, escolas, políticos tradicionais ou empresários. Não raro o desenvolvimento é atribuído ao grande agronegócio, à empresas, indústrias e concreto. Aliás, Barreiras é um lugar muito quente, que não morremos tostadas/os porque tem muita água ao redor, digo sempre, pois se dependesse da lógica do asfalto sequer estaríamos respirando mais. Há uma política de asfaltamento em detrimento de arborização, por exemplo.

No entanto, contraditoriamente, a presença de buracos marcou por muito tempo a paisagem do município e foi uma das principais reivindicações, facilmente atendida pelo atual prefeito, fato que lhe rende ótimas avaliações da população desatenta frente aos buracos sociais profundos e aos bairros periféricos, totalmente abandonados.

As ações de asfaltamento do centro da cidade não são suficientes para esconder os enormes buracos sociais que acompanham a existência do município, tão desamparado por sucessivas gestões. A posição de um dos melhores Índices de Desenvolvimento Humano da Bahia não corresponde à realidade local. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mede o nível de desenvolvimento humano municipal tendo como critérios indicadores de educação, longevidade e renda. Quem conhece Barreiras sabe: não corresponde à realidade local. Isso não significa que as belezuras e momentos marcantes que todas/os vivemos por lá sejam apagados, mas apenas que precisamos perceber que nem tudo são espinhos nem tampouco só flores.

É necessário dizer que a educação pública deixa a desejar em termos de uma formação humana integral, expressa por meio de uma cultura local absurdamente passiva, individualista, racista, machista e homofóbica, com valores distantes de valores humanos elevados. Os índices de violência, sobretudo contra as mulheres, seja no âmbito doméstico ou de estupros e assédios, representa o quão abandonada são as políticas públicas, seja no espaço urbano ou rural.

Bares, farmácias e igrejas ocupam todo o território e o único teatro municipal (Centro Cultural, a eterna “Casa da Cultura”) é ocupado como centro de convenções para eventos burocráticos. Isso me diz muito e à você? No entanto, temos artistas criativos que atravessam os tempos e resistem ao abandono das políticas públicas, mantendo sua arte, nossa arte, mas que poderia ser valorizada, portanto, ser um processo menos sofrido.

A saúde é loteada entre os políticos que delegam as vagas para o seu eleitorado ou serve de trampolim para futuras candidaturas, como a história local mostra, repetidamente. A saúde está longe de ser um direito e está privatizada por meio da terceirização de consultas e exames. O mercado da saúde em Barreiras cresce tanto quanto elege médicas/os para cargos políticos. A saúde é tratada como lucrativa moeda de troca. E quando o Centro de Saúde da Criança Emilly Raquel foi fechado, vi pela primeira vez um ato de rua organizado por mulheres e repleto de mulheres-mães e crianças e mesmo meio ingênuo, foi lindo de viver aquele momento em defesa de direitos fundamentais.

O transporte municipal está sob o domínio de uma empresa há décadas. A tarifa ao custo de R$3,45 não se justifica diante de curtos trajetos e veículos sucateados. Quem conhece e usa, sabe do que estou falando. Por muito tempo foi uma pauta prioritária dentre minhas causas e, precisa ser, porque após décadas não percebemos melhorias, muito pelo contrário. A naturalização do inaceitável parece compor a paisagem e um novo movimento recolocando o transporte coletivo municipal no centro das lutas, precisa emergir. Além de reivindicar por ciclovias e incentivar mais ainda o uso de bikes como transporte em uma cidade plana (mas quente rs). Arborização precisa vir junto.

Tantas instituições educacionais não garantem que tenhamos sequer um veículo de comunicação comprometido eticamente com a produção de notícias qualificadas e a existência de movimentos sociais é quase inexistente e quando existe, bastante frágil. Interesses politiqueiros rondam a maioria das iniciativas, reproduzindo o ciclo de individualismo e passividade. É assustador. Desanimador, sobretudo quando você é uma voz destoante neste contexto. Mas mesmo assim, há iniciativas que surgem aqui e acolá, o que nos falta é consistência.

Os poderes executivo e legislativo possuem uma relação imoral, pelo fato de se misturarem de tal modo que suas funções se perdem. O Executivo atual faz do legislativo seu servo mais do que nas gestões anteriores e, literalmente, de acordo com o que podemos verificar no site da Câmara (texto em construção), quem legisla em Barreiras é o prefeito. Além disso, a formação de quem ocupa tais cargos é frágil, sobretudo em termos éticos humanos, fato que pode ser atestado mediante as ações disponíveis no site da Câmara.

Violações de Direitos Humanos estão presentes em tudo o que foi relatado acima, além de uma cultura de mercantilização das pessoas, prostituição, desumanização. Poderia ser diferente num contexto como esse? É necessário que seja!

Porém, se o cenário é verdadeiramente desanimador, também são as pequenas e contínuas formas de resistência adotadas, aos poucos, pela população. Vez ou outra, essas individualidades rompem em direção ao coletivo e temos ações importantes, mesmo que raras. Além disso, urge formação qualificada de nosso povo, para que tenha condições de perceber e analisar a realidade, para intervir com vistas à transformá-la e não apenas se adaptar ou querer ser o novo sacana da vez, atrás de uma nova atitude que é mais arcaica que tudo.

"Uma cidade triste é fácil de ser corrompida! Uma cidade triste é fácil ser manipulada!" diz trecho da música Revólver da Flaira Ferro. Lembrei de Barreiras desde a primeira vez que ouvi, não porque ache que Barreiras seja triste, mas porque é fácil de ser corrompida e manipulada. Talvez precisemos estimular e desenvolver mais a alegria para mudar esse contexto, uma alegria conjugada com criticidade.

Apesar de todas essas situações e condições desfavoráveis, Barreiras agrega uma infinidade de pessoas com algum grau de consciência coletiva, mas que insistem em se manter dispersas. Assim, creio que o maior desafio e o melhor presente que podemos dar à Barreiras, em retribuição ao carinho com que acolhe e nos nutre de várias maneiras, é conseguirmos nos organizar coletivamente para enfrentar todas essas situações e muitas outras, que se repetem e precisam ser paralisadas.

Vida longa à capital do velho oeste baiano!

domingo, 10 de maio de 2020

Precisamos falar sobre maternidade compulsória

Por Paula Vielmo

Precisamos falar sobre maternidade compulsória - Bem Blogado

Neste dia das mães quero lhes presentear com uma breve reflexão sobre maternidade compulsória. 

Pensar a maternidade como compulsória, ou seja, como algo obrigatório é uma reflexão pertinente mais ainda em nossos tempos, porque já há muita produção e luta envolvendo a questão, bem como a maternidade tem gerado sofrimento em muitas mulheres por ser obrigatória. Aqui não sou contrária a maternidade, mas objetivo refletir criticamente sobre a escolha de ter ou não filhas/os, bem como a garantia dessa escolha, independente de qual seja. Ainda, a necessidade permanente de desromantizar a maternidade enquanto inata, instintiva, necessária e, percebê-la como uma construção social, como quase tudo em nossa sociedade.

Começo afirmando que falo do lugar de quem não é nem deseja ser mãe, o que não me impede de pensar sobre. Em seguida, afirmo que as mulheres que desejam ser mães, devem ter essa escolha garantida com dignidade, o que não ocorre em nossos tempos. A maternidade é uma invenção. Mas nem sempre foi assim. A maternidade como a conhecemos em nossos dias foi rabiscada no século XIX, não por coincidência, quando o modo de produção capitalista se consolida, naturalizando a produção de filhas/os, que são produtos das mulheres. 

É indiscutível que temos aparelho reprodutor, mas não significa que tenhamos que parir. Comassim? É isso mesmo, simples desse jeito. Se te provocou espanto, pare e pense sobre isso. Não pensar sobre tudo o que está dado é um grande problema, porque as coisas parecem naturais quando elas não são, estão sendo. Naturalizar que precisa reproduzir e que "ser mãe" é aceitar todo tipo de situação é conveniente.

Desejar não ter filhas/os é transformado em um problema porque somos nós, as mulheres, que reproduzimos a força de trabalho, somos nós que reproduzimos as pessoas para trabalharem. O modo de produção capitalista percebe as mulheres como reprodutoras de força de trabalho, por isso, parir na sociedade capitalista precisa ser algo compulsório. Pensar sobre significa dar uma alfinetada no sistema rs

No entanto, desejar ter filhas/os não garante dignidade no processo, seja pela sobrecarga de atividades, seja pelas condições precárias do sistema de saúde, seja pela elevada violência obstétrica, pelo desemprego, pela ausência plena de direitos. O sistema capitalista quer mão de obra aos montes, mas não garante que as mulheres sejam bem tratadas para isso, ele faz com que todos esses maus tratos sejam considerados "normais".

Converse com mulheres que gestaram e pariram e isso poderá ficar estampado na sua cara, mas é mais comum que quase ninguém repare, porque parece "que sempre foi assim". Essa ideia atrapalha bastante, porque parece que não tem jeito e que o amor incondicional necessita passar por todas as dificuldades, porque "ser mãe" significa renunciar à sua vida em função da vida da/o filha/o.

Mãe nem é considerada uma pessoa, ela é quase algo sobrenatural. Assim é o desenho, mas isso só prejudica as mulheres que querem ter filhas/os. Na maternidade, as mulheres gestantes não tem nomes, elas são chamadas de "mãe"; nas escolas, essas mulheres nem tem nome, elas são chamadas de mãe. A mãe anula a identidade de ser mulher. Há quem ao se apresentar mal diz o nome e já alega no conjunto de características, "ser mãe". Ser mãe é algo divino e construído socialmente, exemplo maior é como as meninas são adaptadas desde cedo com essa função por meio de bonecas que simulam bebês e outros aparatos. Ninguém nasce gostando de rosa e de boneca, somos ensinadas, condicionadas à isso.

É preciso garantir, como já afirmei, que as mulheres que desejem ter filhas/os possam fazê-los de modo decente, porque as condições estão bem indecentes. Além de ser violentada no processo de gestar e parir, essas mulheres passam por insegurança para garantir alimentação, moradia, educação, saúde, lazer, cultura para as/os filhas/os. Também, pela própria sobrevivência destas/es, sobretudo quando são mães negras periféricas, tamanho o genocídio das/os filhas/os negros. Estive em um enterro de um jovem e a mulher-mãe estava numa situação tão dolorosa que é impossível descrever aquela situação, foi profundamente marcante. A maternidade é idealizada, porque a vida real é dura viu!

Para aquelas mulheres que não desejam ter filhos/as, a pressão social é imensa, desde a afirmação de que seria incompleta até que seria mal amada. Ora, a quem interessa pintar essas mulheres de tal forma?

O aborto como proibição legal passa pela maternidade compulsória, pois a mulher que interrompe uma gestação rompe com a construção social de maternidade, ela não se sente obrigada a ter filhas/os, mesmo que já tenha. A Pesquisa Nacional de Aborto (2010 e 2016) aponta que a maior parte das mulheres que abortam no país já tem filhas/os.

Para superar a maternidade compulsória, precisamos pensar e falar sobre isso. Problematizar, como nos ensinou Paulo Freire. Por fim, indico três leituras que podem contribuir com essas reflexões e me influenciaram na elaboração deste texto:


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terça-feira, 5 de maio de 2020

Conflitos entre gênero e raça? A participação de Thelma e Babu no BBB 2020

O Blog recebe com muita felicidade, este artigo de opinião da minha amiga querida Indiara Souza (abraçooooo), que compartilhou conosco reflexões importantes envolvendo a falsa disputa entre gênero e raça no BBB 20. Leiam e deixem comentários, porque ela está estreando! E que texto, minha gente!


                                                                                                                  Por Indiara Souza*

Famosos e anônimos apontam atitudes racistas de brothers com Babu ...O reality show Big Brother Brasil apresentou, nesse ano de 2020, uma edição que, para muitos espectadores, foi considerada histórica. Em sua vigésima exibição, o reality teve em seu elenco duas pessoas negras: Babu Santana, ator convidado, e Thelma Assis, médica, inscrita selecionada.
Desde o primeiro contato na casa, Thelma e Babu comentaram sobre a importância de ambos naquele espaço, para compartilhar experiências semelhantes, no que diz respeito ao debate racial. A partir disso, surgiu nas redes sociais uma euforia, principalmente por parte das pessoas negras, que enxergaram em Babu e Thelma representação tão potente.
O BBB 20 obteve destaque também por ter sido composto por alguns homens de caráter duvidoso e questionável. Logo nas primeiras semanas do programa houve uma repulsa por parte do público direcionada a esses participantes. Assim, ocorreram as eliminações do jogo e, consequentemente, os homens começaram a sair e as aproximações por afinidade começaram.
Babu teve facilidade em dialogar com os homens mais criticados da edição e Thelma com uma colega de profissão que, no momento, era bem avaliada pelos espectadores. É nesse contexto de escolhas ou afinidades distintas que destaco algumas percepções sobre o debate nas redes sociais.
Desde o primeiro paredão que Babu enfrentou, ele optou por mencionar sua história e as dificuldades enfrentadas; Thelma escolheu se apresentar como um exemplo de superação, mulher negra que foi adotada na infância, de família pobre, teve que criar oportunidades para conseguir estudar. No seu canal no Youtube, ela conta a dificuldade que enfrentou até se tornar uma médica e os comportamentos racistas e sexistas que ainda sofre, atuando na área da saúde.
A diferença do discurso da Thelma e do Babu no programa foi: Babu mencionava as dificuldades financeiras que tinha deixado aqui fora e como era preterido por outros atores "padrão". Thelma exigia reconhecimento por sua personalidade e coerência. Destaco mais uma vez que minha intenção não é questionar a empatia do público por Babu, mas sim pontuar a maneira como a sociedade lida com uma mulher preta que “não deita para ninguém”, como diz o ditado popular.
Babu além de manter relação muito próxima de afeto com homens brancos extremamente machistas e homofóbicos, também sorriu das falas agressivas dos amigos e fez alguns comentários como: “se ela dança seduzindo assim ta pedindo, não adianta reclamar depois” e “aquele viadinho”, entre outros. Ele levantou discussões dentro da casa, que refletiram nas redes socias, uma delas foi como é negativo se referir a uma pessoa negra chamando a mesma de negra, afirmou que somente no Brasil isso é aceitável. Como estamos todxs passíveis a equívocos, alguns militantes o defenderam, com o argumento de que essa pode ser uma visão pessoal.
Alguns poucos posicionamentos contrários a essa afirmação me trouxe a memória um artigo com o tema “Quem tem medo da palavra negro”, escrito por Cuti e publicado na revista Matriz, em 2010. Cuti afirma que ao usarmos a palavra negrx, estamos impedindo que esqueçam toda carga semântica que ela carrega, a história não permite que nos esqueçamos de como a população negra foi duramente escravizada durante séculos, exatamente por serem NEGRXS. Assim, nos afirmar negras e negros também nos remete à dívida histórica, a resistência antirracista do nosso povo. A tentativa de excluir essa palavra do nosso vocabulário não é algo inocente, é mais uma atividade colonizadora com intuito de nos fazer ignorar tamanha crueldade.
Entre essas discordâncias, nas redes sociais, o que predominou foram diversas páginas e pessoas que se afirmam como militantes, apresentando Babu como um professor. Entendo essa afirmação um tanto prejudicial pois, deslegitima profissionais e pesquisadorxs que se dedicam em apresentar uma escrita negra coerente com dados comprovados. E por que essa reflexão? Porque essas mesmas pessoas defenderam Babu das suas falas machistas e homofóbicas com o seguinte comentário “é uma questão estrutural, Babu é um cara do povão”. Esse mesmo homem do povão também ganhou duas vezes o prêmio nacional de maior destaque “Grande Otelo” de melhor ator.
Essas premiações também fazem parte da carreira de um homem que fez mais de 40 trabalhos, incluindo novelas e participações no cinema, etc. Com isso, penso que diferente de muitas outras pessoas negras, Babu está em espaços que outros negros não têm acesso. Thelma precisou se inscrever para participar do BBB, Babu foi convidado. Estudar sobre aquilo que ele afirma defender não é algo difícil e distante da realidade dele, ignorar isso é um tanto irresponsável; quando exigem uma postura extremamente personalizada de uma mulher negra, que foi o caso da Thelma.
BBB20: Prior pede para Babu votar em Thelma, ator nega e irrita ...

Todas as vezes que iniciava o debate sobre questões raciais no reality, Thelma e Babu apresentavam suas vivências e considerações, mas somente Babu recebeu o maior destaque e apoio. Babu foi defendido quando apoiou seus amigos machistas e justificou que a postura dos mesmos era algo “comportamental”. Ele afirmava que não votaria em Thelma enquanto tivesse outras opções, desde que essa outra opção não fosse seu amigo Prior (acusado de estupro, após a saída do reality), agressivo com ações e palavras. Thelma também afirmou que não votaria em Babu tendo outras opções, opções essas que não fossem suas duas amigas. Thelma defendeu Babu quando insinuaram medo dele e partiu para o enfrentamento por não votar nele. Por isso, recebeu o castigo do monstro (uma espécie de "prenda", em consequência de uma prova, que premia o vencedor com um almoço e ainda garante o direito a levar dois participantes mais próximos) e o distanciamento de algumas pessoas que ela tinha muito carinho.
Em contrapartida, foi insultada por um amigo do Babu afirmando que não tinha o que discutir com Thelma, pois ele “tinha berço”. Essa discussão aconteceu literalmente na frente do Babu e ele não pronunciou uma única palavra para defender a mulher negra. Mas o mesmo Babu afirmou para um homem branco que Thelma havia escolhido a casa grande, apenas por ter aceitado o afeto de mulheres brancas. Em nenhum momento Babu foi julgado por isso, Thelma foi extremamente julgada quando optou por não votar em sua amiga sendo rotulada como “chaveirinho de mulher branca”, sua página foi duramente criticada, enquanto a página do Babu reproduziu o mesmo comportamento do Babu fora da casa chamando Thelma de mucama: termo usado no período escravocrata, referente à negra escrava que realizava as obrigações domésticas e também era ama de leite dos filhos dos senhores. Mais uma vez, a militância permaneceu em silêncio.
O argumento de que Thelma priorizou gênero ao invés de raça, como fez Babu, é inválido quando analisamos as defesas dele para seus amigos. Assim é nítida a solidão da mulher negra na sociedade, pois para muitas pessoas o correto seria Thelma abrir mão do afeto e lealdade oferecidos a ela, para defender um homem negro, que optou também por não a priorizar. Thelma foi criminalizada por usufruir de afeto. Esses acontecimentos me fazem concordar com a seguinte afirmação feita por minha amiga Beatriz Silveira: “existem privilégios dentro dos próprios movimentos, digo, no movimento negro nitidamente é o homem negro o privilegiado, no feminismo, a mulher branca”.
Nesse sentido, relembro a afirmação feita por Chimamanda Adichie, em Sejamos Todos Feministas (2016) “não é fácil conversar sobre a questão de gênero”, repensar nosso comportamento dentro dos próprios movimentos é necessário e diversas vezes não nos atentamos para isso. Entender que Thelma está em um lugar de privilégio em relação ao Babu é injusto, pois ambos frequentam espaços consequentes das escolhas profissionais. Thelma não deixa de sofrer racismo e misoginia por ser médica, a exemplo as injustas críticas direcionadas a ela no período do reality.
Thelma, até o último paredão, foi desacreditada ou tida como arrogante, apenas por não aceitar ser feita de boba ou diminuída. E me assusta a militância ignorar esses fatos, quando no próprio jogo ela sempre fazia provas com o Babu e ao perder uma dessas provas ele afirmou ter perdido porque “ela era lenta”, e quando a mesma venceu uma prova de resistência foi desmerecida dentro do próprio reality. Foi necessário brigar pelo reconhecimento, não houve comoção e sim termos como “ficou soberba, arrogante”. E quando o assunto era Babu, surgia textão nas redes sociais e muita emoção por ter um homem negro sendo injustiçado.
A minha reflexão não se baseia em ignorar a trajetória do Babu, mas sim de questionar como o homem, incluindo homens negros, mantém seus privilégios, sem que a sociedade faça uma reflexão. Antes mesmo de entrar no BBB Thelma expôs no seu canal sobre as diversas situações de racismo sofridas por ela, e em nenhum momento foi defendida como “dona e proprietária da palavra”, afinal, ela não agiu conforme o perfil de mulher negra que a “militância” impôs na internet. Para a mulher negra existe um perfil para que tenham empatia, para o homem, basta que ele apresente o mínimo discurso “bonitinho” para receber aplausos e honras.
Adichie (2019), em seu livro O perigo da história única, reflete acerca das relações de poder e como isso pode ser definitivo na história de um sujeito. Babu, sendo homem negro, obviamente está acima das mulheres negras na pirâmide social, seu discurso se estabelece e é defendido sem que haja resistência. Thelma, mulher negra que se encontra na base da pirâmide, precisa gritar para que seja notada, e talvez ouvida. Errar é inadmissível para uma mulher negra, para o homem negro há uma justificativa estrutural acerca do machismo e racismo, como se a mulher negra não fosse alvo de ambas crueldades.
A partir dessa insensibilidade direcionada à mulher negra, podemos relembrar a necessidade da visão interseccional teorizada por Kimberlé Crenshaw, que é fundamental no movimento feminista. Uma mulher negra não tem a vantagem de vivenciar apenas questões raciais, ela está em um lugar vulnerável, que tende a ser subalternizado, por experienciar gênero e raça, cruelmente, ao mesmo tempo. Ela não pode eleger uma opressão para lutar, precisa articular para se posicionar e resistir às diversas opressões. Assim, nota-se a importância de reconhecer o lugar social que os homens negros ocupam, para não perpetuar a invisibilidade na vida e luta das mulheres negras.
Durante os 98 dias do BBB tentaram criar uma história sobre a trajetória e escolhas da Thelma. Ao final, ela provou para todxs como a trajetória de uma mulher negra tende a ser solitária e difícil. Mas partir para o enfrentamento ainda é a melhor escolha quando concluímos um ciclo, entendendo que foi mérito único e exclusivo da nossa persistência e ousadia. 














* Indiara Souza, essa lindeza sabida, é graduanda do curso de Letras - Língua e Literaturas de Língua Portuguesa, na Universidade do Estado da Bahia, Campus IX.