segunda-feira, 11 de outubro de 2010

QUANDO O VERDE É AZUL

Por Felipe Demier (4/10/2010)

Os quase 20% do total dos votos válidos obtidos ontem pela candidata Marina Silva, do Partido Verde (PV), obrigarão a realização de um segundo turno eleitoral a 31 de outubro, fato que deixou, segundo um amigo meu de Perdizes (SP), toda assanhadinha a Avenida Paulista na cinzenta manhã dessa segunda feira. Proclamada como uma agradável surpresa pelos grandes meios de comunicação, o percentual de votos alcançados por Marina Silva possibilitou aquilo que era, na verdade, o sentido último da candidatura verde: fazer com que o campeonato eleitoral disputado por pontos corridos tivesse ainda uma outra fase, de mata-mata, na qual o candidato da oposição de direita, José Serra, pudesse medir forças em condições de igualdade com a candidata governista “de esquerda”, Dilma Rousseff.

Deixando para os incontidos jornalistas políticos a comemoração por mais uma “festa da democracia” a ser realizada em breve, me aventuro a dizer aqui que a “vitória eleitoral” de Marina Silva exprimiu o significativo espaço existente para uma opção política pós-moderna em um Brasil profundamente desigual e combinado, pra lembrar aqui o velho Trotsky.

Em uma ponta dos votantes verdes, no Brasil “moderno”, encontram-se aqueles jovens com baixíssima formação política pertencentes aos extratos médios mais confortáveis da sociedade, amantes dos últimos modelos de telefone celular e das deletérias crônicas do anticomunista Arnaldo Jabor. Lídimos filhos dos privatizados anos 90 do século passado, esses jovens, esteticamente estilizados pelas marcas com “responsabilidade social” (que ajudam 10 crianças na África para cada 1000 que exploram na Ásia), tomam sua opção eleitoral por Marina como mais uma de suas atitudes cool, que em períodos não eleitorais se materializam normalmente em sessões de cinema iraniano e um chope ou outro no Jobi do aprazível Leblon. Ao lado dessa juventude alternativa – para quem a alternativa ao capitalismo não é senão um capitalismo com ainda mais ongs e espaços culturais financiados por bancos ­–, estão também aqueles renegados e midiáticos intelectuais que, por alguma filigrana moral superegóica que ainda lhes resta, sentiriam um mal estar na noite de domingo se, como em seus sonhos de véspera, tivessem apertado o 45 na urna eletrônica.

Na outra ponta dos eleitores de Marina, no Brasil “arcaico”, encontram-se amplos contingentes populares de origem proletária e adeptos do insípido protestantismo evangélico, que cresce exponencialmente em um capitalismo periférico de desagregação social assustadora. A adesão desses contingentes à inflada “onda verde” é decorrente não de uma “opção política consciente e cidadã”, como gostam os artistas-garotos-propaganda que “fazem a sua parte”, mas sim da força de atração e cooptação exercida pelas máquinas eleitorais as quais estão submetidos devido à sua miséria material e espiritual. Isto porque embora se arvore como defensor de uma “nova agenda” a ser aplicada por meio de uma “nova forma de fazer política”, o partido verde brasileiro é tão fisiológico quanto qualquer outro dos partidos das nossas classes dominantes. Sem perder tempo com “inócuas” manifestações de rua pró-meio ambiente e ocupando impudentemente secretarias e cargos em governos municipais e estaduais de qualquer matiz ideológico (se é que ainda existe algum outro matiz além do neoliberal por aqui), o PV sabe fazer oposição tanto quanto sabiam as facções estaduais vitoriosas em relação ao presidente da república durante a democracia oligárquica nas décadas de 1900 e 1910. Arrastadas pelo pastor ou pelo caudilho político (ou pelos dois, em muitos casos), essas massas anônimas também sufragaram messianicamente o nome de Marina no domingo, uma ambientalista evangélica anti-aborto que, depois de no governo federal permitir a farra das madeireiras na Amazônia e das multinacionais “transgênicas” no campo, como candidata mostrou que sabe se comunicar tanto pelas sagradas escrituras com seus “arcaicos” eleitores, quanto pelo twitter com os seus (pós-) modernos. Em uma palavra, uma “eco-capitalista”, como bem disseram o incansável Plínio de Arruda Sampaio e o corajoso operário José Maria de Almeida ao longo de suas importantes campanhas eleitorais (que, como qualquer um pode agora perceber, deveriam ter sido uma só).

A combinação dessas duas pontas do eleitorado de Marina conseguiu trazer para a órbita verde ainda alguns milhões de pessoas que ilusoriamente nela enxergaram uma alternativa à polarização intra-burguesa PT x PSDB. Assim, essa amalgamada receita verde, desigual e combinada (mas não orgânica), foi azeitada por um discurso meio místico, meio antropológico (já que a antropologia de hoje prefere cada vez mais a mística à ciência), que dizia ser Marina “uma mulher da floresta”, curiosamente a mesma floresta na qual o seu vice de chapa expropria via “lei de patentes” o saber dos povos indígenas, transformando-o (por meio de uma mística que Marx já desvendou há um bom tempo) em lucro para sua empresa “socialmente responsável”. Como tempero final, foram adicionados os apoios declarados de conhecidas personalidades da indústria cultural, como o do talentoso músico tropicalista Caetano Veloso, cuja lista de candidatos escolhidos é mais incoerente do que as escalações do (ex-) técnico Silas do Flamengo, e do também talentoso e bem intencionado ator baiano Wagner Moura que, depois de interpretar um herói policial num filme indisfarçavelmente fascista, pediu votos para a reeleição de um valoroso deputado estadual cujo mote político é justamente a condenação à diária repressão policial exercida sobre os setores subalternos da sociedade.

Agora, entretanto, com o início das campanhas para o segundo turno, o enigma Marina parece estar perto de ser desvendado, e as ilusões e confusões de serem dissipadas. Dois monstruosos aparelhos partidários, representantes das mesmas frações do capital internacional e nacional, disputarão quem vai administrar para a classe dominante brasileira seu Estado nos próximos quatro anos, e, assim, quem irá seguir pagando a dívida externa, concentrando renda, freando a reforma agrária, esfacelando os serviços públicos essenciais e retirando direitos sociais universais para garantir a taxa de lucro das grandes corporações financeiras, industriais e do agro-negócio. De um lado, um partido nascido das lutas operárias que, convertido em partido da ordem e dotado de prestígio entre os movimentos sociais organizados, cumpriu religiosamente tudo isso, mas que, por estratégia de dominação social num país com índices obscenos de desemprego, aumentou o crédito para o mercado consumidor, ampliou significativamente a distribuição de migalhas via bolsa-família e abriu concursos públicos, buscando, com tais medidas, conquistar também um alargamento de sua base social-eleitoral. Do outro lado, um partido tradicional da burguesia brasileira, que caiu no gosto desta precisamente porquanto cumpriu com maestria a função de esmagar politicamente a classe trabalhadora na década de 1990 e realizar o ajuste neoliberal-privatista no país. Por uma mentalidade de armarinho, como gosta de dizer um amigo meu, ou por mero sadismo, como me disse outro, não se dispôs a gastar quase nada do volumoso orçamento nacional com os que vivem (ou tentam viver) do seu trabalho, deixando-os a deus-dará – ainda que esse deus seja o deus-mercado. Ao que tudo indica, Marina Silva e seu partido (capitaneados pelo mutante Gabeira) irão, mais ou menos deslavadamente, orientar seus eleitores verdes a votar no azulado José Serra, optando, assim, pela proposta mais reacionária de gestão do capitalismo brasileiro (ou pela mais sádica, segundo aquele amigo)

Assumindo, camaleonicamente, a cor azul nesse segundo turno, a candidata verde talvez ajude a romper a ilusão daqueles que ingenuamente nela ontem votaram para evitar, ao menos no primeiro turno, ter que escolher entre Dilma e Serra (inclusos aqui muitos e muitos estudantes, trabalhadores, intelectuais, artistas etc.). Quanto às massas populares sob influência da máquina eleitoral do PV, é provável que a maioria delas siga as orientações de sua “santa da floresta” e de seu partido (ou não, como diria o supracitado músico tropicalista). Já no que concerne aos antes mencionados segmentos médios de vida cool – tão distantes de uma opção política socialista quanto seu mundo de consumo alternativo o é dos poucos trabalhadores brasileiros que por ela ainda renitentemente lutam –, pode ser que uma parte substantiva deles se encontre, nas urnas, com seus adversários estéticos de sua própria classe, os yuppies, mauricinhos e patricinhas que – embora hoje utilizem avidamente maconha e demais psicotrópicos como antes o faziam, grosso modo, apenas os alternativos supostamente rebeldes – nutrem um histérico asco ao PT em função do que esse partido já foi um dia, e não exatamente pelo o que ele é hoje. Todavia, se por um acaso inquiridos forem se não vêem mesmo nenhum problema em votar no candidato da direita brasileira, tal como farão as alas patologicamente mais reacionárias da burguesia e da classe média do país, é provável que respondam com o sonso adágio relativista pós-moderno da moda: “não, qual o problema?”.


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