segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Uma interpretação do pronunciamento do Prefeito de Barreiras

 Por Indiara de Souza Conceição e Paula Vielmo


No dia 04 de agosto deste ano, quando Barreiras apresentava dados oficiais com mais de 7.000 casos notificados de síndrome gripal, 1.805 casos confirmados de Covid-19, 23 pessoas em internação hospitalar e 33 óbitos, fomos surpreendidas com o pronunciamento do Prefeito Municipal de Barreiras, Zito Barbosa. Surpreendidas, porque, diante de uma situação cada dia mais preocupante, a liderança municipal havia desaparecido do cenário público e a população cobrava manifestação do Prefeito, comum antes da situação piorar. Além disso, nos chamaram atenção os efeitos de sentido (isto é, o(s) discurso(s)) no pronunciamento do Prefeito. Por estarmos em um grupo de estudo sobre Análise de Discurso (AD), resolvemos analisar discursivamente o referido pronunciamento; o resultado, nós o compartilhamos na forma deste texto.

A AD iniciada pelo filósofo e linguista francês Michel Pêcheux se desenvolve através do diálogo entre os seguintes campos do conhecimento: linguística, marxismo e psicanálise, tendo como foco as discursividades, isto é, a análise “das palavras em movimento”, como afirma a professora e pesquisadora pioneira em AD no Brasil, Eni Orlandi. Para a AD, os enunciados que produzimos NUNCA são apenas palavras soltas no mundo; há SEMPRE uma determinação sócio-histórica em toda significação, isto é, os enunciados significam segundo a influência ideológica. Para compreender como essas textualidades se constituem, a AD dispõe o que nos parece como categorias para contextualizar os discursos. Entre essas categorias, selecionamos as seguintes para analisar o pronunciamento: condições de produção, memória, lugar e posição do sujeito.

A condição de produção corresponde ao contexto ao qual o sujeito pertence e as influências que esse contexto pode e exerce na construção do “seu”  discurso. A memória está relacionada ao interdiscurso, isto é, às informações externas que o sujeito internaliza e replica nas situações de comunicação, “inovando e adaptando” o sentido de acordo com sua “necessidade”. E as categorias  de lugar e de posição do sujeito são recrutadas para que se entenda como a subjetividade é histórica, é ideológica, e é determinada pela identificação com o que se chama de formação discursiva. Dito isso, passamos a explicar cada uma dessas categorias a partir do pronunciamento do Prefeito. 

Temos como condição de produção um contexto de silêncio do prefeito diante do aumento de casos de contaminação e óbitos em Barreiras pela doença provocada pelo novo coronavírus, somados ao fato de o pronunciamento dar-se na mesma data em que foi publicado o Decreto Estadual nº 19.893/2020, determinando toque de recolher entre 19h e 5h da manhã, restringindo, assim, a movimentação de pessoas na rua. Ainda é da ordem da condição de produção a filiação do prefeito ao Partido Democratas, oposição histórica ao Partido dos Trabalhadores, ao qual se filia o atual governador, Rui Costa.

O sujeito do discurso é o prefeito Zito Barbosa, cujo perfil traçado advém de dados extraídos do site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE): João Barbosa de Souza Sobrinho, homem pardo, 60 anos de idade, engenheiro civil e casado. Apesar de Barreiras ser o município de nascimento, sua carreira política se desenvolveu no município vizinho: São Desidério, onde foi prefeito por três vezes. Atualmente, ele é filiado ao Democratas (ex-PFL), partido pelo qual foi eleito, sendo que foi prefeito de São Desidério pelo PFL.

Este sujeito está inserido em um contexto de pressão popular por providências para a crise sanitária instalada; por ser ano eleitoral e ser pré-candidato a reeleição; um contexto de valorização de obras como pavimentação asfáltica e inauguração de construções de unidades escolares e postos de saúde, garantidos “mesmo com queda de receita”. A ênfase nas obras remete a um interdiscurso (memória) de anos sem tais atos em nosso município, uma necessidade antiga da população. Ainda, a tentativa de aproximação com a população ao iniciar com “meus amigos e amigas de Barreiras”. Ora, a amizade é "afeição, estima, dedicação recíproca entre pessoas", segundo o Aurélio. O prefeito é nosso amigo? Somos amigas e amigos do prefeito? Que relação deseja estabelecer ao usar tal tratamento?

O pronunciamento compõem um espectro de memória de descrença em representantes políticos, o que se chama de “políticos” no senso comum. É a lembrança de que a prefeitura não está fazendo o suficiente e de que o prefeito, que tanto aparecia nas redes sociais antes do surto de casos, simplesmente desapareceu. Consideramos ser este o motivo da insistência, ao longo do seu pronunciamento, em se afirmar como sujeito não político. É interessante destacar, todavia, que essa negação se faz justamente a partir de um lugar social que é o de político. 

Havia e ainda há um sentimento de descaso frente às ações necessárias para conter a disseminação da doença provocada pelo novo coronavírus, pois a medida mais efetiva é o distanciamento social. Contudo, os locais públicos e privados seguem com aglomerações.

Para reduzir a memória de abandono, o sujeito do discurso expõe uma sequência de medidas de enfrentamento ao coronavírus: contratação de 20 leitos em um hospital privado; transformação do Hospital Municipal Eurico Dutra em um pronto atendimento para casos de contaminação pelo novo coronavírus, com 12 leitos e 02 respiradores; em seguida, fala em 35 leitos. Para as reclamações com a não realização de exames, expressa: parceria com a UFOB, contratação de um laboratório particular, compra de 5000 testes e 20.000 testes rápidos. No fio discursivo, enquanto apresenta “soluções”, revela-se, também, o repasse de recursos públicos para o setor privado da saúde, indicando não haver investimentos suficientes na estrutura municipal e um aprofundamento das políticas de privatização do serviço de saúde, numa aparente ação necessária. 

Informa a contratação de 72 profissionais de saúde e destaca os médicos: são 22; reforça com isso uma memória de poder na equipe de saúde, “a” profissão da saúde. Segue elencando as ações: centro de triagem; central de teleatendimento com ambulância e equipe médica. Não informa sobre o funcionamento ou como obter mais informações; aborda a ampliação no horário de atendimento de duas Unidades Básicas de Saúde: Emily Raquel e Ouro Branco até 22h, sem justificar os motivos dessas duas unidades e não de outras. E anuncia obras, por meio de 12 unidades que serão construídas, além de reformas e ampliações.

Necessário trazer à tona a ênfase do sujeito do discurso em relação à sua fé, mesmo na condição de agente público em um Estado laico: “sou cristão”, diz.  Esse destaque na identidade cristã movimenta o sujeito da sua posição de agente público para “um simples indivíduo de fé que age a favor do povo”, isso quer dizer, semelhante a Jesus Cristo, importante líder religioso reconhecido por sua bondade e amor ao próximo. 

Ao colocar-se como um homem cristão que preza pela vida, destaca um outro lugar social que não o de prefeito. Destacar o lugar de cristão retira a responsabilidade do cargo que ocupa na prefeitura e o permite argumentar que as cobranças feitas pela população são baseadas em perseguição política e ele não responde politicamente, ele fala como cristão, pai e filho, cidadão de bem (ou líder?) que administra pelo bem estar do povo. Por isso, humildemente, ele aceita o decreto emitido pelo governo do estado. Logo, ele fala de igual para igual com a população, não tem motivos para ser responsabilizado pelo aumento dos casos de contaminação e mortes pelo coronavírus. 

Está evidente que o pronunciamento proferido pelo Prefeito Municipal de Barreiras pretende, como efeito de sentido, amenizar as críticas em se tratando das ações envolvendo o combate à propagação da doença provocada pelo novo coronavírus, bem como frisar as obras desenvolvidas neste ano eleitoral. Contudo, a rejeição ao pronunciamento pode ser verificada por meio dos inúmeros comentários nas redes sociais da prefeitura, onde o vídeo foi disponibilizado (link aqui).

Por fim, podemos concluir que o sujeito do discurso não respondeu as cobranças da população, mas gravou um boletim diário com uma série de informações devolvendo a responsabilidade à população; obedecendo um decreto externo para demonstrar ausência de disputa com a vida das pessoas. O pronunciamento não atende a ações necessárias. Ao enunciar “demonstrar a nossa responsabilidade com Barreiras”, o sujeito do discurso afirma que evitar aglomerações é algo que somente as pessoas podem fazer, quando sabemos que não é verdade. São possíveis ações de informação, educação e fiscalização , por exemplo, pela Prefeitura. 

O boletim de 31 de agosto informa 9.713 casos notificados de síndrome gripal, 3.638 casos confirmados de Covid-19, 22 pessoas em internação hospitalar e 63 óbitos

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